Cidadania é o conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive.
O conceito de cidadania sempre esteve fortemente "ligado" à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e na sua administração, seja ao votar (direto), seja ao concorrer a um cargo público (indireto).[3] No entanto, dentro de uma democracia, a própria definição de Direito, pressupõe a contrapartida de deveres, uma vez que em uma coletividade os direitos de um indivíduo são garantidos a partir do cumprimento dos deveres dos demais componentes da sociedade[4] Cidadania, direitos e deveres.
História
O conceito de cidadania tem origem na Grécia clássica, sendo usado então para designar os direitos relativos ao cidadão, ou seja, o indivíduo que vivia na cidade e ali participava ativamente dos negócios e das decisões políticas. Cidadania, pressupunha, portanto, todas as implicações decorrentes de uma vida em sociedade.[5]
Ao longo da história, o conceito de cidadania foi ampliado, passando a englobar um conjunto de valores sociais que determinam o conjunto de deveres e direitos de um cidadão "Cidadania: direito de ter direito"
Nacionalidade
A nacionalidade é pressuposto da cidadania - ser nacional de um Estado é condição primordial para o exercício dos direitos políticos. Entretanto, se todo cidadão é nacional de um Estado, nem todo nacional é cidadão - os indivíduos que não estejam investidos de direitos políticos podem ser nacionais de um Estado sem serem cidadãos.
No Brasil
Os direitos políticos são regulados no Brasil pela Constituição Federal em seu artigo 14[6], que estabelece como princípio da participação na vida política nacional o sufrágio universal. Nos termos da norma constitucional, o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos, e facultativos para os analfabetos, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos e os maiores de setenta anos.
A Constituição proíbe o alistamento eleitoral dos estrangeiros e dos brasileiros conscritos no serviço militar obrigatório, considera a nacionalidade brasileira como condição de elegibilidade e remete à legislação infra-constitucional a regulamentação de outros casos de inelegibilidade (lei complementar n. 64, de 18 de maio de 1990).
História e análise da cidadania no Brasil
O historiador José Murilo de Carvalho define cidadania como o exercício pleno dos direitos políticos, civis e sociais, uma liberdade completa que combina igualdade e participação numa sociedade ideal, talvez inatingível.[7] Carvalho entende que esta categoria de liberdade consciente é imperfeita numa sociedade igualmente imperfeita. Neste sentido, numa sociedade de bem-estar social, utópica, por assim dizer, a cidadania ideal é naturalizada pelo cotidiano das pessoas, como um bem ou um valor pessoal, individual e, portanto, intransferível.
Esta cidadania naturalizada é a liberdade dos modernos, como estabelece o artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948: "toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal."[8] A origem desta carta remonta das revoluções burguesas no final do século XVIII, sobretudo na França e nas colônias inglesas na América do Norte; o termo cidadão designa, nesta circunstância e contexto, o habitante da cidade "no cumprimento de seus simples deveres, em oposição a parasitas ou a pretensos parasitas sociais”.[9]
A etimologia da palavra cidadania vem do latim civitas, cidade, tal como cidadão (ciudadano ou vecino no espanhol, ciutadan em provençal, citoyen em francês). Neste sentido, a palavra-raiz, cidade, diz muito sobre o verbete. O habitante da cidade no cumprimento dos seus deveres é um sujeito da ação, em contraposição ao sujeito de contemplação, omisso e absorvido por si e para si mesmo, ou seja, não basta estar na cidade, mas agir na cidade. A cidadania, neste contexto, refere-se à qualidade de cidadão,[10] indivíduo de ação estabelecido na cidade moderna.[11] A rigor, cidadania não combina com individualismo e com omissões individuais frente aos problemas da cidade; a cidade e os problemas da cidade dizem respeito a todos os cidadãos.
No Brasil, nos léxicos da língua portuguesa que circularam no início do século XIX, observa-se bem a distinção entre os termos cidadão (em português arcaico, cidadam) e o fidalgo, prevalecendo o segundo para designar aquele indivíduo detentor dos privilégios da cidade na sociedade de corte.[12] Neste contexto, o fidalgo é o detentor dos deveres e obrigações na cidade portuguesa; o cidadão é uma maneira genérica de designar a origem e o trânsito dos vassalos do rei nas cidades do vasto império português. Com a reconfiguração do Estado a partir de 1822, vários conceitos políticos passaram por um processo de resignificação; cidadão e cidadania entram no vocabulário dos discursos políticos, assim como os termos Brasil, brasileiros, em oposição a brasílicos. Por exemplo: povo, povos, nação, história, opinião pública, América, americanos, entre outros.[13]
A partir disso, o termo cidadania pode ser compreendido racionalmente pelas lutas, conquistas e derrotas do cidadão brasileiro ao longo da história nacional, a começar da história republicana, na medida em que esta ideia moderna, a relação indivíduo-cidade --- ou indivíduo-Estado -- "expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo (...)”.[14] Em outros termos, fundamenta-se na concessão do Estado das garantias individuais de vida, liberdade e segurança. O significado moderno da palavra é, portanto, incompatível com o regime monárquico, escravista e centralizador, anterior à independência política do Brasil. No entanto, este o divisor (monarquia-república) não significa no Brasil uma nova ordem onde a cidadania tem um papel na construção de sociedade justa e igualitária. Este aspecto é bem pronunciado na cidadania brasileira: estas garantias individuais jamais foram concedidas, conquistadas e/ou exercidas plena e simultaneamente em circunstâncias democráticas, de estado de direito político ou de bem-estar social.
O longo caminho inferido por José Murilo de Carvalho refere-se a isto: uma cidadania no papel e outra cidadania cotidiana. É o caso da cidadania dos brasileiros negros: a recente Lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 1989[15] é um prolongamento da luta pela cidadania dos "homens de cor", cujo marco histórico formal é a Lei Áurea de 1888; ou seja, um século para garantir, através de uma lei, a cidadania civil de metade da população brasileira, se os números do ultimo censo demográfico estão corretos;[16] portanto, há uma cidadania no papel e outra cidadania cotidiana, conquistada no dia-a-dia, no exercício da vida prática; tal é que ainda hoje discute-se nas altas esferas da jurisprudência brasileira se o cidadão negro é ou não é injustiçado pela história da nação.[17] Considere-se que na perspectiva de uma cidadania plena, equilibrada e consciente, não haveria de persistir por tanto tempo tal dúvida.
O mesmo se pode dizer da cidadania da mulher brasileira: a Lei 11.340 de 7 de Agosto de 2006[18], a chamada "Lei Maria da Penha", criou mecanismos "para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher". Ou seja, garantir sua liberdade civil, seu direito de ir e vir sem ser agredida ou maltratada. No caso da mulher, em geral, a lei chega com atraso, como forma de compensação, como retificação de várias injustiças históricas com o gênero; o direito de votar, por exemplo, conquistado através de um "código eleitoral provisório" em 1932, ratificado em 1946.[19] A lei do divórcio obtida em 1977,[20] ratificada recentemente pela chamada Nova Lei do Divórcio,[21] ampliando a conquista da liberdade civil de outra metade da população brasileira.[22] São exemplos de como a cidadania é conquistada, de forma dramática -- por assim dizer --, a custa de esgotamentos e longas negociações políticas.
Neste contexto, a lei torna-se o último recurso da cidadania, aquela cidadania desejada, praticada no cotidiano, não é difícil encontrar nas manchetes e notícias dos jornais diários brasileiros práticas que contradizem as leis e subvertem o estado do direito, não apenas contra negros e mulheres, mas também contra trabalhadores assalariados, agricultores sem-terra, indígenas, deficientes físicos, deficientes mentais, homossexuais, crianças, adolescentes, idosos, aposentados, etc.[23] Um caso prático para ilustrar esta realidade cotidiana é a superlotação dos presídios e casas de custódia; a rigor, os direitos humanos contemplam também os infratores, uma vez que, conforme mencionamos, “toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
Se existem leis que visam reparar injustiças, existe também uma longa história de lutas cotidianas para conquistar estes direitos: o direito à liberdade de expressão,[24] o direito de organizar e participar de associações comunitárias, sindicatos trabalhistas e partidos políticos,[25] o direito a um salário justo, a uma renda mínima e a condições para sobreviver,[26] o direito a um pedaço de terra para plantar e colher,[27] o direito de votar e ser votado --[28] talvez o mais elementar da democracia moderna, negado a sociedade, na já longa história da cidadania brasileira.[29] É esta luta cotidiana por direitos elementares que define a cidadania brasileira e não os apelos ao pertencimento, ao nacionalismo, a democracia e ao patriotismo do cidadão-comum.
Pode-se entender, portanto, que a cidadania brasileira é a soma de conquistas cotidianas, na forma da lei, de reparações a injustiças sociais, civis e políticas, no percurso de sua história e, em contrapartida, a prática efetiva e consciente, o exercício diário destas conquistas com o objetivo exemplar de ampliar estes direitos na sociedade. Neste sentido, para exercer a cidadania brasileira em sua plenitude torna-se absolutamente necessário a percepção da dimensão histórica destas conquistas no percurso entre passado, presente e futuro da nação. Este é o caminho longo e cheio de incertezas, inferido por José Murilo de Carvalho. Esta é a originalidade e especificidade da cidadania brasileira.
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